1984 x
ADMIRÁVEL MUNDO NOVO
Djordana
Bombarda
A primeira coisa que chama atenção nos dois
livros é a temática. Ambas falam de opressão, descrevem ditaduras cujo
principal meio de coerção se dá através do patrulhamento das ideias e do
aniquilamento da identidade. O indivíduo não existe no mundo futurista
imaginado por Huxley, em que até a concepção e o parto são destituídos de
“naturalidade” e os bebês gerados, após seleção criteriosa dos genes de machos
e fêmeas, em laboratório. A solidão, a tristeza e a velhice também são abolidas
no novo mundo e a consciência é entorpecida por um hedonismo desesperado, o
prazer adquirido através de uma droga de controle social, o soma. Em 1984, o indivíduo
também não existe. O Partido e o Grande Irmão controlam as vontades e as
consciências. Uma pessoa não é nada, só o grupo importa, fora do grupo só
existe aniquilação. As opiniões que valem são a do grupo, notas dissonantes
primeiro precisam ser “catequizadas”, depois humilhadas e quando ninguém
lembrar sequer de um eco de discordância, eliminada.
Admirável Mundo Novo foi publicado em 1932, sob a ameaça do nazi-fascismo, que se
espalhava na Europa e que culminaria com a II Guerra Mundial. Já 1984 foi
publicado em 1949, após a guerra, quando o mundo ainda se recuperava das
feridas provocadas pelo conflito. Era também o início do processo que dividiria
o mundo em blocos políticos e econômicos.
A fama de Huxley e de Orwell como gurus decorre do fato dos dois,
décadas antes, terem descrito, quase com perfeição, o mundo globalizado onde
vivemos. Ler Admirável Mundo Novo ou 1984 sem traçar paralelos com a sociedade
pasteurizada, preconceituosa, infantilmente apegada ao prazer rápido e
descartável, além de submissa da atualidade, ao menos para mim, é impossível.
O Soma distribuído como ração em Nosso Ford, o ”país modelo” do
admirável mundo novo de Huxley, pode ser substituído por uma infinidade de
recursos e/ou substâncias utilizadas para mitigar a dor da nossa frustração
enquanto civilização.
O Grande Irmão de 1984, por sua vez,
reeditado num mundo que perdeu a noção de privacidade, tem mais olhos que a
Hidra de Perna e suas infinitas cabeças. A verdade é que a ideia de sociedade
já nasceu velha e caduca.
O que firma-se como verdade universal é que as duas obras, apesar
das datas de publicação, não perdem a capacidade de renovar-se. Pelo menos não enquanto a humanidade
repetir a história ad infinitum, mudando
apenas os nomes das personagens principais, mas movida pelos mesmos motivos.
Admirável Mundo Novo
– Partindo de uma realidade
conhecida no seu tempo, a divisão da sociedade por castas, Aldous Huxley
ambienta sua história no hipotético mundo de Nosso Ford (o trocadilho com o
famoso economista e com a fábrica de automóveis é intencional). Neste país, os
seres humanos são condicionados psicológica e biologicamente para viverem em
harmonia, cada um na sua casta, apaziguado com a realidade, sem questionar a
ordem “natural” das coisas. Para isso, o governo de Nosso Ford implanta um
rigoroso sistema de produção de bebês em série, abolindo a reprodução sexuada.
Após selecionar os genes masculinos e femininos e cruzá-los em laboratório, as
crianças nascidas, de acordo com suas características de casta, recebem a
educação compatível em centros especializados, que os condicionam (via lavagem
cerebral) para desempenharem suas funções e para, lógico, abominarem, com toda
sorte de preconceitos, as castas diferentes. Fora de Nosso Ford, vivem “os
selvagens”, seres humanos que ainda são vivíparos e que enfrentam a dor e a
angústia de viver num mundo em que os indivíduos tem vontade própria. O
conflito do livro é o choque de realidade entre um rapaz criado numa reserva de
“selvagens” e que é levado para conhecer Nosso Ford. Uma das melhores passagens
da obra é o diálogo do Selvagem e de Vossa Fordeza, o líder de Nosso Ford,
sobre Deus, fé e humanidade.
1984 – Também partindo da realidade
conhecida, a Europa dos primeiros anos do pós-II Guerra, George Orwell imagina um
mundo dividido em três superpotencias que vivem de brigas e alianças entre si e
cujo controle social é exercido pelo Partido e pelo líder Grande Irmão.
Vigiados 24 horas por dia pelas teletelas (principal instrumento da polícia das
ideias) os cidadãos desse mundo sitiado vivem um progressivo aniquilamento da
memória e da individualidade. Os cidadãos que trabalham para o partido, eles
mesmos igualmente vigiados, tem como missão criar a Nova Fala, idioma em que
todas as palavras tidas como subversivas (praticamente todas que reunidas numa
frase conduzam ao ato de pensar) precisam ser abolidas e trocadas por outras,
meramente funcionais e sem significado. Ao mesmo tempo, o Ministério da Verdade
se ocupa de alterar fatos e datas históricas cada vez que o Partido acredita
que uma determinada informação pode comprometer o regime, daí, depois de pouco
tempo, ninguém mais sabe o que é a realidade de fato ou o que é uma versão da
realidade, se é que existe alguma realidade de fato. O herói da história é
Winston, um membro do partido que trabalha no Ministério da Verdade e que,
inadvertidamente, descobre um documento que deveria ter sido alterado e
eliminado e que pode destruir o Partido, caso caia nas mãos erradas.
Mas o hábil exercício de futurismo dos autores não decorre de
poderes mágicos (se bem que às vezes eles parecem mesmo ter superpoderes), mas
apenas da sagacidade em observar o mundo que se construía em 1932 e em 1949,
mover as peças do tabuleiro em determinadas direções apontadas pela conjuntura
e visualizar o que seria o futuro.
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